Relatos de um Desastre

Na semana que rememoramos os dez anos da maior tragédia climática da história de Blumenau e Santa Catarina, compartilho com vocês um artigo que fiz em 2009, a pedido da coordenação de comunicação da Defesa Civil do Estado, que reuniu em um livro jornalistas que contaram um pouco das suas experiências.

Relatos de um Desastre foi o título.

O texto é longo, sei. Mas é um documento com as minhas lembranças para um momento que não deve ser esquecido e precisa ficar como aprendizado.

Alexandre Gonçalves

Jornalista

 

Eram quase 5 horas da manhã daquele ainda tão próximo dia 22 de novembro de 2008, um sábado, quando meu celular tocou. Chovia no Vale do Itajaí pelo menos desde o final de agosto. Não me lembro quem estava do outro lado da linha, mas falava de uma explosão na BR 470, entre Blumenau e Gaspar. Sem vítimas. Preguiçoso e de plantão na TV no final de semana que começava, virei para o lado na cama e cochilei mais alguns minutos. Em seguida recebi a ligação do colega Caio Santos, repórter cinematográfico da Ric Record Blumenau,  que já acompanhava a explosão de uma tubulação da SC Gás na rodovia federal ocorrida menos de duas horas antes. Relatou a gravidade da situação.

Aqueles dois telefonemas, antes mesmo de amanhecer, foram o prenúncio dos dias que estavam por vir. A escala de plantão me colocava para “fechar” o Jornal Meio Dia daquele sábado (carro chefe da Ric Record Blumenau, líder de audiência na faixa horária do meio dia na região). Como sempre acontece nos finais de semana de plantão, jornalistas torcem para que nada aconteça para poder curtir com a família, com os amigos ou com quem quer que seja. Mas aquele não era um final de semana normal. Foi quando começou a maior catástrofe climática de Santa Catarina.

O plantão preguiçoso deu lugar à preocupação. Chovia muito e os problemas começavam a pipocar. A escala reduzida do final de semana, como em todos os veículos de Imprensa, começava a não dar conta da demanda de informações. Mesmo assim, fizemos um jornal com bastante conteúdo naquele sábado, mas sem nunca imaginar a proporção do que estava por vir. Os alertas foram dados, apesar das autoridades buscarem tranqüilizar a população. Não as condeno. Hoje percebo que não havia como perceber uma tragédia desta proporção, mesmo com toda a tecnologia. Quem imaginaria que morros inteiros viriam abaixo?

A água já invadia várias ruas da cidade, entre elas a Rua Das Missões, onde está localizada a Ric Record em Blumenau. Terminado o Jornal Meio Dia, discutíamos o que faríamos. Roberto Bertolin, diretor regional, o âncora Alexandre José e eu, coordenador de jornalismo.  A emissora não tem telejornal à noite no sábado e em tese só teríamos jornalismo na segunda-feira no começo da manhã, no SC NO AR. Mas, percebendo a gravidade da situação climática, a direção da Ric Record decide exibir um telejornal especial na faixa horária das 19 horas. Era hora de tentar arregimentar a equipe para as notícias que viriam por aí, Mas as dificuldades eram muitas em meio ao caos que começava a se instaurar na cidade.

O grupo estava reduzido, disperso e para piorar, os colegas Emerson Luis e Caio Santos partiram no começo da tarde para a cobertura dos Jogos Abertos, que começaria naquele final de semana em Timbó, Indaial e Pomerode. Ao entrar em contato com os colegas que estavam de stand by (na reserva, jargão para explicar o profissional que não trabalha naquele dia, mas em caso de um fato excepcional é chamado.) e mesmo os de folga, descobrimos que muitos viviam dramas particulares ou estavam empenhados em ajudar familiares, amigos e desconhecidos já atingidos pela força da água. Alguns colegas estavam ilhados. Restava naquele começo de tragédia poucos profissionais para começar a cobertura de um desastre climático de proporção nunca vista antes.

O telefone da emissora começou a tocar mais seguidamente naquele sábado à tarde. De plantão, o vigilante Sérgio Veras atendia as ligações e repassava para o jornalismo.  Eram relatos de problemas em diferentes bairros da região e cidades vizinhas. A BR 470 estava interrompida, por conta da explosão do gasoduto, no trecho de Gaspar.  Os dramas aumentavam e com eles as notícias. Cabia a nós jornalistas buscá-las e passar para as pessoas.

Como o plantão tranqüilo já tinha ficado na saudade e com a equipe desfalcada, restou para mim a tarefa de verificar de perto o que as pessoas não paravam de dizer ao telefone para o Sérgio. Com o cinegrafista Demian Lenine, fui para a região da Rua Pedro Krauss Senior. O cenário era desolador, mas era só o primeiro dia. Muita coisa estava por vir e não demorou muito. Ainda olhando os estragos na região, uma das mais carentes e violentas da cidade, veio a informação da primeira morte registrada na cidade, há poucos quilômetros de onde estávamos. Eu e o Demian saímos voando.

Ao chegar numa transversal da Rua Araranguá, o clima era de dor e indignação. Assim fomos recebidos pelos moradores da comunidade, também carente de infra-estrutura básica, mas localizada próximo à região central de Blumenau. Familiares, vizinhos e curiosos haviam acabado de acompanhar a retirada do corpo da menina Luana, de três anos e olhavam os escombros da casa onde ela morava com a família. Enquanto o  Demian registrava tudo, eu não acreditava no que via e buscava informações com os moradores e curiosos. Eu estava impressionado, mas era apenas o começo.

Às 19h fizemos um bom telejornal, todo estadualizado, mas com participação ao vivo das praças. Contamos como foi o sábado de muita chuva, falamos da explosão do gasoduto e da morte da pequena Luana. A palavra de ordem das autoridades era ainda tranqüilidade. O Rio Itajaí Açu, eterno vilão das tragédias em Blumenau, estava aumentando de nível, mas muito longe de provocar uma enchente. Ainda não imaginávamos que a tragédia viria dos morros e encostas da cidade. Fui para casa.

Pensei que talvez fosse a hora de relaxar e aproveitar a folga que restava no final de semana. Como de costume, a culinária seria o passatempo da noite de sábado, nem me lembro o cardápio daquela janta, mas recordo que terminamos a gastronomia sem iluminação, assim como boa parte da cidade. A chuva insistia em cair, cada vez mais ameaçadora. Barulhos eram ouvidos ao longe, mas era impossível imaginar que morros e árvores começavam a vir abaixo.  Era hora de descansar o corpo cansado e tentar sonhar com um domingo daqueles rotineiros, onde apenas a equipe de reportagem que estava de plantão teria que cobrir os estragos causados por mais uma das tantas chuvas que Blumenau está acostumada. Mas aquela era diferente, jamais vista. Sem saber ainda, tentei dormir.

Na madrugada de sábado para domingo, novamente fui acordado por uma chamada inesperada. Em vez de um telefonema, a campainha. O síndico do prédio onde moro com minha esposa alertava para a necessidade de tirarmos os carros da garagem. A água do Ribeirão da Velha, que divide o edifício e o Clube Vasto Verde, estava tomando conta de todo o pátio. Dezenas de homens e mulheres com cara de sono levavam os seus veículos para uma rua lateral, mais alta.  O clima era ainda de apreensão. O medo só viria na noite seguinte.

Domingo pela manhã, não tinha jeito. Assim que acordei fui à emissora para saber o que estava acontecendo, entender a dimensão dos estragos. Sem energia elétrica, estava ilhado em casa e a possibilidade de ficar sem celular, porque a bateria estava acabando, me deixaria ainda mais “desplugado”. Na rua onde moro, a água barrenta atingia o térreo do bloco vizinho e chegava perto da nossa entrada. No caminho do Bairro Velha à  Ponta Aguda, sede da Ric Record, a confusão era grande, por conta dos inúmeros alagamentos. Motoristas eram obrigados a fazer manobras arriscadas e desconhecidas. Ruas inteiras estavam alagadas e famílias começavam a ser resgatadas de dentro de suas casas.

Na chegada à emissora, outro sinal. Para trafegar pela Rua das Missões, onde estamos localizados, somente no sentido bairro-centro. A partir do nosso prédio a água tomava conta das duas pistas, um dos caminhos para se chegar à rodoviária.  Os poucos e mesmos colegas que já estavam na TV mostravam-se muito preocupados. O telefone não parava com novas informações de tragédias. Desabrigados passavam a ser contados às dezenas e tudo parecia fugir de controle.

Tentamos recrutar os colegas disponíveis, quem estava por perto e tinha condições de chegar. Angélica Sattler e Roberta Koki juntaram-se a mim, ao Alexandre José , André Santos e o Luis Deluca. A equipe escalada para cobrir os JASC, Emerson Luis e Caio Santos, já voltava de Timbó, revezando-se em registrar as tragédias que viam pelo caminho e a preocupação com os familiares em Blumenau. O diretor regional Roberto Bertolin e o vigilante Sérgio também estavam juntos, assim como o Henrique Zanotto.

A Ric Record abriu espaço na programação nacional da Rede e começou a transmitir programação ao vivo para todo Estado. Por volta do meio dia, oito mortes já estavam confirmadas na cidade. A água ameaçava invadir a emissora e chegava perto até do gerador de energia. A situação ficava ainda mais perigosa. No começo da tarde o governador Luiz Henrique estava na cidade, acompanhando os estragos e conhecendo o QG que começa a ser montado na Prefeitura. Jornalisticamente a palavra dele era importante e conseguimos garantir a sua presença no nosso estúdio. Por volta das 15 horas, Luiz Henrique entrou na sede com água pouco abaixo da canela. Deu sua visão em rede estadual sobre a tragédia que se desenhava.

Foi a ultima transmissão da emissora de Blumenau até terça-feira noite.  Naquele momento, depois da fala do governador, uma decisão drástica foi tomada. Era preciso subir os equipamentos para o segundo andar, pois a água ameaçava entrar pela lateral do prédio, muita próximo onde está localizada toda área operacional e de jornalismo. Um mutirão foi feito para carregar computadores, câmeras, fitas, armários, ilhas de edição, televisores, mesas de som e monitores. Numa das subidas, me espatifei no chão molhado com um monitor destes, que não quebrou, mas nunca voltou a funcionar. E para piorar fiquei com dor nas costas por alguns dias.

Final da tarde de domingo, era hora de voltar para casa. Minha esposa estava comigo na TV e saímos de lá com água agora sim batendo as canelas. Sabíamos que não havia luz em casa e não tínhamos nem lanterna e nem vela. Impossível achar estabelecimento comercial aberto em meio a este caos. Como um dos únicos caminhos possíveis para voltar para casa era o Morro Petrópolis, onde Priscila se criou,  nós paramos na casa de uma vizinha do passado, onde conseguimos duas velas. O sistema de trânsito não existia mais e era muito arriscado dirigir. A subida do morro foi uma aventura perigosa, com muita água descendo. Para chegar em casa foi preciso trafegar um trecho grande da Rua João Pessoa em contra-mão, com água por todos os lados.  Muitas ruas estavam alagadas e intransitáveis. Em frente ao nosso prédio, água quase no hall de entrada. Deixamos o carro novamente na rua ao lado, mais alta.

Cansados e com medo, acompanhamos a noite na escuridão, mas com sons muito fortes. Eram estrondos que ainda não sabíamos identificar, barulhos que pareciam indicar árvores caindo e ainda os ruídos das corredeiras que o ribeirão da Velha proporcionava.  Em um determinado momento da noite ele parecia um rio volumoso, tamanha a força. O Clube Vasto Verde, o pátio e a entrada do nosso prédio e a rua já eram uma coisa só, um grande e furioso rio. Para piorar, o estrondo de uma explosão e labaredas ao longe. Era mais uma tubulação de gás que explodia, desta vez na região do Belchior. Sem vítimas, mas o medo só aumentava.

Preocupada, minha esposa Priscila questionava o que fazer e falei que deveríamos esperar o dia amanhecer, nada poderia ser feito durante a madrugada. Ainda brinquei que o único risco que corríamos “era o prédio cair”, pois tínhamos estoque de mantimentos para pelo menos uma semana, em caso de ficarmos ilhados se as águas não baixarem Fomos dormir, mas com os olhos abertos. Aqueles barulhos, de coisas vindo abaixo, dominaram aquela madrugada escura.

Ao acordar na segunda-feira, vi que a água deu uma ligeira trégua em frente ao meu prédio, peguei o carro e fui para a emissora. Ver o que era possível fazer com os equipamentos desmontados. No caminho, mais confuso ainda, as conseqüências daqueles sons todos da madrugada. Árvores, placas, postes e morros caídos. Casas, lojas, estabelecimentos e carros soterrados, barro por tudo. Pessoas desesperadas, nervosas, desamparadas.

Felizmente água acabou não invadindo a emissora e nesta manhã do dia 24 já estava menos ameaçadora. De forma absolutamente improvisada, começamos a remontar minimamente a televisão para que ela voltasse a funcionar. Quem estava lá era escalado para ir às ruas e mostrar a dimensão da tragédia que acontecia aqui. As pautas estavam em cada esquina. A cada minuto, novo relato de desmoronamento, de tragédia, de mortes. Muitos destes relatos não se concretizavam na mesma proporção, felizmente. Por outro lado, muitas das histórias superavam o que se poderia esperar.

Alertei a coordenação de jornalismo da Ric Record em Florianópolis para a dimensão e a precariedade que nos encontrávamos. Assim como em vários setores, pedi socorro para reforçar as equipes de trabalho.  Enquanto tentávamos nos dividir entre a remontagem da emissora e a cobertura da tragédia, a ajuda a familiares, amigos e vizinhos e os problemas individuais faziam parte da nossa rotina. Mesmo assim mais colaboradores foram chegando. No horário do almoço saímos eu e as colegas Angélica e Roberta para tentar encontrar alimentação para quem estava trabalhando. Lama, entulhos, móveis e muita sujeira era o cenário das ruas. Muita gente de vassoura, mangueira e pás nas mãos, muita gente consternada pelas calçadas. Destruição por todos os lados.

Sem transporte coletivo, a cidade estava literalmente “fechada”. Com a maioria dos funcionários “ilhados”, poucos estabelecimentos abriram as portas. Os que abriram apresentavam longas filas. Conseguimos comprar alguns lanches em um posto de combustível, já perto da minha casa. Aproveitei para ver como estava a situação, pois sem luz e telefone, minha esposa estava incomunicável. Ao chegar próximo de onde moro, susto. Vizinhos carregavam mobílias e pertences, a orientação da Defesa Civil era que evacuássemos o prédio. A boba brincadeira da noite anterior acabou se revelando uma premonição.

A força da água comeu boa parte do terreno e mais um pouco atingiria um dos alicerces do prédio. Mas a chuva dava uma trégua e o ribeirão já baixara bastante, o que me deu certa tranquilidade. Era só não chover mais.  Reservamos uma vaga do Hotel Viena, do amigo Luciano Monteiro, que já recebia dezenas de desabrigados. Mas decidimos esperar para ver a evolução das coisas e no final das contas acabamos ficando no apartamento, depois que a energia elétrica foi restabelecida na região.

Desmontar uma emissora de televisão em situação de emergência foi fácil, mas remontá-la em uma situação também de emergência era muito complicado, e isto consumiu toda segunda-feira. O sinal da Ric Record que os telespectadores de Blumenau e região recebia em suas casas era o de Florianópolis e não o daqui.  De forma muito precária conseguimos fazer participações ao vivo nos telejornais em rede estadual e assim passar alguma informação do que estava acontecendo. Apesar desta condição operacional, pelo menos quatro equipes de reportagem tentavam dar conta do que vinha acontecendo nas ruas e outras pessoas ficavam na redação recebendo, monitorando e repassando as informações, que naquele momento, eram contraditórias, alarmantes e trágicas.

Conseguimos finalmente fazer o primeiro jornal ao vivo de Blumenau na terça-feira (25) à noite, no espaço do Ric Notícias. Registramos as mais de 50 mortes computadas até então na Região. Entre as tantas, teve a morte de uma senhora na Rua Martin Luther, a poucos metros da Prefeitura, na região central de Blumenau e a de uma família inteira em Gaspar; também os primeiros resgates no Morro do Baú, a situação de milhares de desabrigados e dos donativos que começavam a chegar.  Mostramos os atendimentos médicos e a verdadeira Força Tarefa do Exército Brasileira que estava sendo montada em Blumenau.

Aliás, aqui é importante fazer uma referência ao Exército Brasileiro. Se o cenário e o clima eram de guerra, o trabalho dos militares foi fundamental na defesa da vida, salvando dezenas delas através de helicópteros, carros anfíbios e principalmente homens que arriscaram suas vidas em um terreno ameaçador para salvar pessoas e fazer chegar alimentos e agasalhos a outras. O que eles fizeram aqui foi digno de orgulho e um reconhecimento eterno por parte do povo blumenauense e do Vale do Itajaí.

Os dias que se seguiram foram de mais trabalho ainda, com jornais de mais duas horas de duração no horário do meio dia, apresentado por Alexandre José. Demoramos dois dias para conseguirmos nos reestruturar em termos de transmissão de sinal de programação da região de Blumenau, mas assim que começamos fizemos uma cobertura ampla, com muita informação, imagens e principalmente serviço. A partir de quarta-feira, 26,  o Jornal Meio Dia, carro chefe da programação local da Ric Record,  voltou a ser exibido regionalmente e prestou um importante serviço, com mais de duas horas de duração. A chuva dava uma pausa, mas os relatos de tragédias não. Havia muita informação desencontrada e não confirmada.

A mídia nacional despertou para a grandeza da tragédia de terça para quarta-feira, quando as redes de TV Nacionais mandaram seus principais profissionais para cá. Em um primeiro momento a cobertura ficou muito focada em Itajaí, por conta da força  das imagens da cidade embaixo das águas e da dificuldade de comunicação e de se chegar a Blumenau. Jornalistas da expressão de Willian Bonner, Datena, Caco Barcellos,  Brito Jr e Roberto Cabrini  passaram por aqui e presenciaram cenas de guerra, de desolação. Tive a oportunidade de conhecer e dar suporte ao trabalho de Roberto Cabrini.

A colega Angélica Sattler virou o rosto da informação sobre a tragédia para todo o país naqueles dias. Instalada no QG montado na Prefeitura para ajuda as vítimas, ela entrou ao vivo para vários programas e telejornais  nacionais da Rede Record, assim como para afiliadas locais e ainda Record News. Em apenas um dia foram 13 participações ao vivo em telejornais de todo o Brasil.

A falta de profissionais dos dois primeiros dias deu lugar a fartura. De tanto recrutar gente e equipamentos, chegamos a ter cinco equipes pela manhã e outras cinco à tarde. Colegas vieram de Florianópolis, os que ficaram ilhados estavam de volta e muitos foram contratados em caráter de emergência, principalmente cinegrafistas e editores. Na redação da Ric, ainda improvisada, era cada vez maior o numero de  colaboradores que eu nunca havia visto antes.

Ouviam-se histórias de “corpos sendo enterrados no fundo do terreno onde moravam”, “de valas comuns”. O Morro do Baú, em Ilhota, “teria mais de uma centena de vítimas fatais e elas seriam enterradas lá mesmo”. Aquele trágico caminhão frigorífico, trazido para cá para receber os corpos que começavam a abarrotar o IGP, antigo IML, piorava as histórias e mexia com o imaginário de uma população apavorada. O medo dominava. Autoridades e Imprensa se uniam em tentar acalmar os moradores.

Quando ouvi que a ponte da “Moellman”, a mais conhecida de Blumenau, que dá acesso ao centro, estava caindo, pensei por alguns segundos que era o fim. Não recordo se foi na terça ou quarta-feira, acho que foi terça, mas imaginei o “fim do mundo”, apesar de não acreditar muito nestas coisas. Foi rápido. Imediatamente contatamos uma das tantas equipes que estavam nas ruas e veio a notícia real. O que cedeu foi uma das cabeceiras da ponte e em princípio, não havia risco da estrutura vir abaixo. Ufa, um problema a menos!

Houve excessos da Imprensa, assim como políticos que buscaram tirar algum tipo de proveito eleitoral na tragédia. Mas o bom senso imperou nos primeiros dias e tanto os veículos de comunicação como as autoridades desempenharam o papel que se esperava deles em um momento de tragédia como aquele: informar, orientar, prestar o serviço e acalmar as pessoas. Mas foi impossível não registrar as mortes, a dor da perda humana ou a de um patrimônio construído ao longo de uma vida indo parar embaixo da terra.

As imagens da tragédia em Blumenau corriam o mundo e sensibilizaram a opinião pública. A cobertura jornalística naqueles dias sequentes mostrou o trabalho de resgate, atendimento e abrigamento de milhares de atingidos e provocou um verdadeiro mutirão comunitário. Pessoas de várias partes do planeta se mobilizaram para ajudar, de diversas formas. Doações começaram a chegar e muita gente veio ao Vale do Itajaí para dar sua contribuição física mesmo, seja carregando mantimentos, amparando pessoas, limpando ruas e casas, ou tantas coisas mais. Diga-se de passagem, se há algo de positivo a registrar nesta situação toda, é a força do povo blumenauense e a solidariedade do brasileiro. Foram comoventes!

Infelizmente esta mobilização toda durou apenas o tempo da comoção de uma tragédia até surgir a próxima. Ou seja, não mais de três meses. Um ano depois a situação é precária na região, em especial em Blumenau, a principal cidade. 1.120 estão vivendo em moradias provisórias e o cadastro aponta que há um déficit de moradia de cinco mil unidades. Até o momento que escrevo este artigo, nos últimos dias de setembro, não há nenhuma moradia destinada às famílias atingidas sendo construída. O projeto Minha Casa, Minha Vida da Caixa Econômica Federal, ainda transita nos labirintos da burocracia, expressão usada pelas autoridades para justificarem a demora. Há promessa que ainda este ano comece, mas dificilmente alguém receberá moradia antes do primeiro trimestre de 2010.

E ainda. Algumas campanhas da sociedade civil e de instituições e até Governos estrangeiros, viabilizaram milhões de reais para serem destinados a construção de moradias. Dinheiro que na maioria dos casos veio de doações. Exceção é para os recursos do Governo da Arábia, cerca de R$ 6 milhões. Conforme foi amplamente noticiado, os recursos já estariam disponíveis. Mesmo assim nenhuma casa foi construída em Santa Catarina. Situação semelhante acontece com a campanha promovida pelo Instituto Ressoar, braço social da Rede Record de Televisão. R$ 10 milhões foram destinados para erguer 630 casas no Estado e poucas delas foram construídas. Em Blumenau, por exemplo, onde existem recursos para 100 casas, não há nenhuma, nem perspectiva.

Pouco mais de 24 ruas, sete pontes e  quatro passarelas estão sendo construídas e recuperadas, numa engenharia cujo dinheiro é do Governo Federal e quem executa é o Governo do Estado, através do Deinfra. O Município, principal interessado, assiste as obras de mãos atadas. Três pontes já foram entregues e o cronograma prevê que todo serviço esteja concluído. Apesar disso, obras fundamentais para a cidade, as de macro-drenagem, ainda estão no projeto. Em algumas ruas principais, como a Rua Itajaí (entrada da cidade, nas proximidades do Complexo do Sesi) e na Dois de Setembro,  os buracos abertos dão dimensão da força da natureza e da inércia para enfrentá-la.

Apesar da reestruturação da estrutura pública, principalmente no caso da Defesa Civil de Blumenau, ela é infinitamente menor que a demanda criada a partir de novembro de 2008. O pequeno número de fiscais impede o trabalho preventivo de ocupação de áreas irregulares e de risco. Para piorar as crateras expostas nos morros e os alertas da meteorologia preocupam. Os problemas e os riscos são grandes. Não estamos preparados, apesar de todo “know how “ macabro que a tragédia trouxe.

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