Livro recolhido pelo MEC não é apologia do incesto. É seu oposto

A polêmica era nacional, mas ganhou força em Blumenau, depois do discurso do vereador Ricardo Alba (PP) na tribuna da Câmara Municipal, vídeo que você pode conferir aqui. 

Alguns dias depois o escritor Maicon Tenfen escreveu um artigo no Santa, onde chamou os vereadores de “bobalhões”. Tomou pau de muitos parlamentares.

E agora publicou novo texto, desta vez na Revista Veja desta semana. Mandou para o Informe também e você acompanha abaixo.

Por Maicon Tenfen

Escritor e professor de literatura brasileira na Universidade Regional de Blumenau (Furb)

 

— Isso aqui não é literatura — vociferou o vereador. — É um lixo!

E exibiu para a assembleia o objeto da sua repulsa, um livrinho de capa azul com o desenho de um menino tocando flauta.

— Já liguei para a secretária de Educação — prosseguiu o político. — Ela mandou recolher todos os exemplares das escolas públicas municipais.

Na hora dos apartes, os demais vereadores fizeram fila até o microfone e parabenizaram a indignação do orador. — Vamos assinar uma moção de repúdio — disse um deles. — Temos de passar um pente-fino nas escolas — disse outro, até que um terceiro, mais delirante, reivindicou o retorno de disciplinas como a extinta educação moral e cívica.

— Concordo 100 por cento com Vossa Excelência — apoiou o orador. — Eu sou do tempo em que toda semana se cantava o hino na escola.

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A cena ocorreu há alguns dias na Câmara de Vereadores de Blumenau, município catarinense situado a 150 quilômetros de Florianópolis. Na verdade, os heroicos representantes do povo estavam apenas chutando um cachorro morto. O MEC acabara de determinar que 93 000 exemplares do livro em questão, Enquanto o Sono Não Vem, de José Mauro Brant, fossem recolhidos das escolas públicas do país. A alegação é que a obra seria imprópria para estudantes em processo de alfabetização.

Um dos recontos do livro, inspirado em tradições populares, narra a história de um rei que pretende se casar com Eredegalda, a mais bela de suas filhas.

O convite é feito assim:

— Se quiseres casar comigo, serás minha esposa, e tua mãe, nossa criada.

Não deixa de ser curioso que o discurso do nosso vereador — e de muitos que condenaram o livro — tenha omitido a resposta da menina:

— Isso não, querido pai, isso não pode ser. Prefiro ficar fechada do que ver minha mãe criada.

Na sequência, por resistir à bestialidade do pai, a menina é trancada numa torre, onde morre de sede.

Se entendermos um conceito simples como “histórias são ferramentas para a vida”, será fácil perceber que o conto de Eredegalda não é uma apologia do incesto, mas o seu oposto. O universo simbólico dos contos de fadas serve para isso mesmo: criar condições psicológicas para que as crianças se defendam do autoritarismo e da barbárie. Se não fosse assim, o MEC também deveria recolher os livros com a história de Chapeuzinho Vermelho. O clássico surgiu para que temas como estupro e assédio sexual fossem discutidos com crianças de 6, 7 e 8 anos, justamente a faixa etária indicada para a leitura de Enquanto o Sono Não Vem.

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A decisão do MEC quanto ao livro da Eredegalda se ampara no parecer técnico da Secretaria de Educação Básica (SEB), que considera as crianças limitadas, sem “autonomia, maturidade e senso crítico para problematizar determinados temas”. Mais grave é que o parecer fecha os olhos para a violência sexual — um problema que existe, inclusive, no seio de muitas famílias brasileiras — e assim impede que as crianças criem defesas individuais contra as situações do gênero. Se o objetivo da censura foi proteger nossas crianças, como dito por tantos demagogos, lamento informar que o tiro saiu pela culatra.

Apesar disso, o ministro da Educação, Mendonça Filho, reafirmou o propósito de “reavaliar” todo o material de leitura disponível nas escolas. Menos, ministro, por favor. Não sei exatamente por que alguém com seu currículo foi nomeado para uma pasta tão importante, mas tenho certeza de que não foi para incentivar devassas em bibliotecas públicas.

É que o tom justiceiro dos vereadores de Blumenau se repetiu em inúmeras cidades brasileiras, de Sidrolândia (MS) a Londrina (PR), de Vila Velha (ES) a Recife (PE). Não são só os blumenauenses que querem passar o “pente-­fino” no currículo e na literatura escolar. Com as porteiras abertas pelo MEC, a histeria inquisitiva está se generalizando Brasil afora.

As decisões do governo federal deveriam pelo menos preservar os estudantes da sanha vingativa de políticos populistas que ainda não entenderam para que servem os livros. Isso vale não apenas para os conservadores, mas também para o pessoal do politicamente correto, haja vista o carnaval que há alguns anos se montou sobre Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato, acusado de difundir a intolerância e o racismo.

Ganha a hipocrisia, perde a educação.

Toda censura se instaura a partir de uma boa causa. Começamos a proibir livros para “proteger as nossas criancinhas” e terminamos compondo um índex de obras nocivas ao governo (que poderia ser representado por esse rei imoral que oprime a família). Depois vemos as fogueiras nos pátios das repartições e, por fim, pessoas sendo presas e torturadas por abrir um livro em praça pública. Vivemos isso há pouquíssimos anos no Brasil. Com essa vocação autoritária dos nossos políticos, basta um titubeio para o pesadelo voltar.

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Eu deveria terminar com um gracejo — como é que se combate a violência sexual com o retorno da educação moral e cívica? —, mas o assunto é sério demais para brincadeiras.

 

5 Comentário

  1. Parabéns, Maicon Tenfen!

    O problema de alguns vereadores é que não leem e, quando leem, não entendem o que leem.

    Não leem porque passam a maior parte do seu tempo a tirar poeira dos celulares.

    E não entendem o que leem porque – alguns – são autênticos bobalhões.

    Aqui, o sábio Alcino Carrancho já escreveu que, por vezes, é melhor o sujeito ficar de boca fechada e parecer inteligente do que ao abri-la demonstrar exatamente o contrário.

    As bíblias estão cheias de incestos e não foram, ainda, queimadas em praça pública.

    Juízo, gente!

    Alcino Carrancho

    (O Sábio)

  2. Sem dúvida, infeliz a atitude do vereador que nem leu toda a obra e concluiu de forma precipitada que era uma apologia ao incesto (se é que leu). No caso concreto do conto dele sobre o rei e sua filha, fica claro, segundo o autor, que as crianças se identificam com a menina castigada e desprezam o pai.
    E mais infeliz são os apartes dos colegas. Alguns provavelmente não leram um livro na vida, mas aproveitam o populismo raso para condenar o autor e sua obra.
    Agora, mais infeliz ainda foi a secretaria de educação acatar o legislativo e recolher os livros na escola. Pra mim, recolher equivale a queimar. Voltamos a idade média.
    Já comentei anteriormente, tem incesto na Bíblia…vamos recolher os exemplares também? Gên. 19:30-38, Sam. 13:2, 14, 28-29, Gên. 20:12,.
    Enfim, concordo com a escritora infanto-juvenil Roseana Murray, autora de quase 100 livros publicados e premiada pela Academia Brasileira de Letras, comentando a polêmica censura do livro de contos de Brant: “Perigosa não é a literatura, e sim a vida. Perigoso é mesclar religião com educação, intolerância com literatura”.

    Ps. para Maicon Tenfen: O politicamente correto, caro escritor, é uma nova forma de censura.

  3. Esse senhor não deve ter filhos, talvez pensasse duas vezes antes de escrever ideologias.
    Na escola é lugar de Matematica, Portugues Fisica Historia,…

  4. Esses vereadores populistas e metidos a moralistas sem moral deveriam é ter vergonha de seus atos. Quanta obtusidade, reacionarismo e falta de conhecimento. O mais lamentável é dar espaço para esses edis sem noção ou mal intencionados. Parabéns pela coragem do escritor.

  5. Vereador Alba e demais vereadores estão certos, todo grande mal, vem disfarçado e com aparência de bondade no início, depois surtem outros livros e quando ja estão consolidados no mercado, então mostram as garras de verdade. Muitos jogos de videogame começaram inocentes, até evoluir para uma versão final e bem distante do propósito inicial. Esse tipo de consciência que meu ex professor de língua Portuguesa está falando, deve ser pautado não apenas na livre interpretação de um texto com gravuras. Fábula ou não, muitas ditas verdades de outrora hoje não cabem mais. Um exemplo seria o relato do Dilúvio, hoje para construir a arca, Noé seria um criminoso ambiental, então ao contar para adolescentes, tem que se ter o cuidado de expor que são coisas de outros tempos. Voltando para as crianças de 06 anos, não adianta falar em outros tempos, deve-se buscar o resultado desejado não com fábulas tão somente, mas sim com todo aparato da escola, o trabalho de profissionais como, psicopedagoga com os grupos alvo são muito importante para um assunto tão presente que é o abuso infantojuvenil. Professor Maicon nunca foi bom na esfera infantil, seu destaque sempre se deu na esfera adulta, Grande abraço.

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